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ENSAIOS
De Ouvidos Abertos para o Mundo
Autor:Cacá Machado
02/mai/2023
Pixinguinha (1959).

 

Aclamado como gênio, quintessência, semideus da música popular brasileira, Pixinguinha, cujo aniversário de morte completa 50 anos em 2023, incorporou os dilemas da cultura sonora de sua época e transitou por diversos circuitos graças a seu talento como instrumentista, compositor, regente e arranjador.

 

Em seu número de 15 de janeiro de 1929, a revista Phono-Arte publicou a seguinte crítica sobre a gravação de “Carinhoso”, música de Pixinguinha (1897-1973), interpretada pela Orquestra Típica Pixinguinha-Donga: “Parece que o nosso popular compositor anda sendo influenciado pelos ritmos e melodias do jazz. É o que temos notado desde algum tempo e mais uma vez neste seu choro, cuja introdução é um verdadeiro fox-troat [sic] e que, no seu decorrer, apresenta combinações de música popular yankee. Não nos agradou”.

 

Como se vê, muito antes de Carlos Lyra compor “Influência do Jazz”, na década de 1960, ironizando em samba-bossa-salsa a suposta má influência do ritmo norte-americano sobre o nosso (“Pobre samba meu/ Foi se misturando, se modernizando, e se perdeu/ [...] Influência do jazz”), já vigorava desde o final dos anos 1920 a preocupação de preservar uma música brasileira “autêntica”. Hoje em dia, soa estapafúrdio acusar “Carinhoso”, quase um segundo hino nacional, de “música popular yankee”. O crítico da Phono-Arte não enxergou ou não quis enxergar nesse tema de Pixinguinha (cuja letra foi escrita por João de Barro, o Braguinha, em 1936) a nossa mais profunda tradição seresteira, que, por sua vez, remonta à tradição modinheira do Brasil Imperial.

 

Perguntado muito tempo depois, em 1968 (depoimento para o Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro), sobre qual seria a definição do gênero musical de “Carinhoso”, Pixinguinha respondeu: “Quando fiz a música, ‘Carinhoso’ era uma polca lenta. Naquele tempo, tudo era polca. O andamento era esse de hoje. Por isso, eu chamei de polca lenta ou polca vagarosa. Depois, passei a chamar de choro. Mais tarde, alguns acharam que era um samba”.

 

Com letra de Braguinha, escrita em 1936, Orlando Silva gravou “Carinhoso” em 1937. A composição foi feita bem antes, em 1916.

É surpreendente a agudeza da leitura de Pixinguinha, pois ao mesmo tempo em que cria certa linearidade dos chamados “gêneros nacionais”, que vai da polca ao samba, também sintetiza um imbróglio do período: como Mário de Andrade já tinha observado, a formação da música popular urbana no Brasil se fez sob uma “enorme misturada rítmico-melódica” e, de modo semelhante, a República nascente também se formava em torno de uma série de indefinições socioculturais conflitantes.

 

O país havia acabado de sair de uma monarquia e de um passado colonial ancorados profundamente na escravidão, tendo como meta uma “modernização” que superasse o “arcaico” mundo rural. Por outro lado, esse mundo era reconhecido como a autêntica “alma nacional”. As novas tecnologias, como a eletricidade, o telégrafo, o automóvel, o fonógrafo, entre outras, ajudaram a incrementar uma convivência urbana que, paradoxalmente, colocava em risco a busca por uma “identidade nacional” que tinha na cultura rural sua “matriz” em forma de folclore. Esse era o viés das discussões tanto para os intelectuais tradicionalistas como para os modernistas. Se internamente os conflitos eram suficientemente complexos, a “influência” estrangeira trazia ainda mais “problemas” para a afirmação do Brasil como um país moderno e autônomo no cenário mundial. Nesse ambiente de ambiguidades e contradições, a fricção de diferentes tradições musicais (negra, europeia, dos povos originários e dos nascidos no território colonial e pós-colonial) ganhava sociabilidade em torno das festas populares, do teatro de revista, das salas de concerto, da indústria fonográfica e, mais tarde, a partir de 1930, do rádio.

 

Benedito Lacerda formava um dueto com Pixinguinha em O Pessoal da Velha Guarda, na Rádio Tupi, que foi ao ar de 1947 a 1952. Almirante apresenta a orquestra, que também integrava o programa: Salvador Correia Barraca (ao lado do apresentador e radialista), Waldemar de Melo (cavaquinho), Rubens Bergman (violão), João da Baiana (pandeiro), Pixinguinha (saxofone), Donga (prato e faca), Alfredinho (flautim), Mirinho (violão) e Nelson.

 

Pixinguinha foi personagem e protagonista dessa cena que marcou o início do século XX. Mais do que isso, como conceituou a pesquisadora Virgínia Bessa, o músico desenvolveu uma escuta aberta, isto é, incorporou em sua trajetória biográfica e musical os dilemas da cultura sonora do período: moderno ou típico, popularesco ou folclórico, entretenimento ou arte, cosmopolita ou nacional, branco, negro ou mestiço? Diferentemente de seus antecessores, como Ernesto Nazareth (focado apenas na obra pianística), ou de seus contemporâneos, como Noel Rosa e Ismael Silva (artistas cancionistas do mundo do disco e do rádio), Pixinguinha sempre transitou por diferentes circuitos como estratégia de sobrevivência, seja por certa ascensão social proporcionada pela profissionalização da música popular nascente, seja pelo seu talento como instrumentista e compositor.

 

No arco de sua escuta singular, o músico teve uma fase regionalista (1919-28), seguindo a moda “sertaneja” da época, como líder de uma orquestra típica — Os Batutas —, período em que excursionou pela Europa e trouxe o saxofone para o cenário da música nacional, prova dos seus ouvidos abertos para o jazz que dominava os salões europeus dos anos 1920. Trabalhou na indústria do entretenimento (1928-37) como instrumentista e arranjador nas nascentes fábricas de disco ao lado de arranjadores europeus radicados no Brasil, como Simon Boutman, contribuindo para a criação da linguagem “fonogênica”1 da música popular — o grande herdeiro dessa tradição foi Radamés Gnattali a partir dos anos 1940. No meio disso tudo, compôs uma centena de choros, fixando o gênero como um produto do disco/rádio que, posteriormente, seria identificado como o mais “autêntico” artigo nacional, junto com o samba.

 

A partir daí, houve certa museificação de sua música e personalidade, isto é, a memória e a história da música popular em construção começaram precocemente a tratar o músico como representante da “velha guarda”. Marco disso foi em 1947, quando o radialista e cantor Almirante criou, na Rádio Tupi, o programa O Pessoal da Velha Guarda, que foi ao ar até 1952, tendo Pixinguinha como figura central — além de diretor musical da orquestra do programa, ele também tinha um dueto com Benedito Lacerda e liderava o conjunto Os Chorões. Surge, assim, o “músico de antigamente”, associado a uma nostálgica e onírica “época de ouro” da música popular, espécie de guardião da tradição e, por contiguidade, da “identidade nacional”. Pixinguinha não tinha ainda completado 50 anos.

 

Entre essas idas e vindas, o autor de “Carinhoso”, o filho de Ogum “Bexiguento”, também deixou que a ancestralidade da cultura afro-brasileira escorresse generosamente por sua música (“Yaô”, “Benguelê”). Talvez Pixinguinha encarne, como disse Almirante, “o mais brasileiro dos músicos brasileiros” não pelo viés nacionalista e identitário que o radialista quis lhe dar, mas, ao contrário, pela liberdade radical de manter os ouvidos sempre abertos para o mundo.

 

 

1 “Linguagem fonogênica” é um termo desenvolvido pelo pesquisador Maurício Teixeira, que afirma que “a indústria do disco e seus músicos começam a criar uma linguagem sonora própria que pode ser chamada de fonogênica. Esta consiste num padrão de organização de timbres, dinâmicas (de intensidade e tempo), combinações e modulações harmônicas e acentuações e divisões rítmicas, permeados pelos processos de industrialização e comercialização da música gravada. O arranjo era, nesse momento, uma das principais ferramentas desse padrão”. [TEIXEIRA, Maurício de Carvalho. Música em Conserva: Arranjadores e Modernistas na Criação de uma Sonoridade Brasileira. Dissertação (Mestrado em Literatura brasileira) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, 2002, p. 66]

 

 

CACÁ MACHADO é compositor e historiador, professor do Instituto de Artes da Unicamp

 

 

GRAVAÇÕES RECOMENDADAS

 

Gente da antiga: Pixinguinha, Clementina de Jesus, João da Baiana

Odeon

1968

 

Pixinguinha RCA
Camden, 1973

 

Benedito Lacerda e Pixinguinha

Camden, 1961

 

Oito batutas

Revivendo, 1994

 

Orquestra Típica Pixinguinha-Donga

Instituto Moreira Salles — Discografia Brasileira