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ENSAIOS
A Danação de Fausto
Autor:James Haar
21/abr/2023
Gravura de Julien Tinayre [1859-1923] com cenas teatrais de A Danação de Fausto, Teatro de Monte Carlo, 1893. A gravura foi publicada em um jornal francês da época (sem identificação).

Berlioz [Hector Berlioz, 1803-69] se referia a essa obra como uma “ópera de concerto”, ainda que sua escolha final de um nome para o gênero tivesse sido “lenda dramática”. A obra foi encenada, por exemplo, em Monte Carlo, em 1893, e por Beecham [Thomas Beecham, 1879-1961], em Londres, em 19331. E Berlioz, após completar a partitura, considerou transformá-la em uma ópera, com a ajuda do libretista da Opéra [de Paris] Eugène Scribe [1791-1861], que produziu o texto necessário para uma apresentação em Londres2. Em alguns aspectos, a obra se assemelha muito a uma ópera, segundo o entendimento que Berlioz tinha do gênero. Suas quatro partes poderiam, com alguma expansão do elenco e do enredo, equivaler a quatro atos (Berlioz disse a Scribe que seriam necessários aproximadamente 45 minutos de música a mais para que a partitura final virasse uma ópera). Ou poderíamos ainda considerar a primeira parte, com Fausto feito um observador solitário das festas camponesas e a “Marche Hongroise” [Marcha Húngara], como um prólogo, seguido de três atos e um epílogo (Margarida no céu). Não há abertura, mas a ópera Os Troianos também começa sem uma. O papel do coro é grande, mas não desproporcionalmente grande, ao menos para Berlioz. Fausto, Mefistófeles e Margarida possuem papéis operísticos dramáticos; seria preciso acrescentar apenas mais uma personagem feminina e, talvez, um ou dois personagens secundários.

 

Abundam ações movimentadas e coloridas, e há proporcionalmente pouco do lado introspectivo da obra de Goethe [Johann Wolfgang von Goethe, 1749-1832] (grande preocupação de Schumann [Robert Schumann, 1810-56] em suas Cenas de Fausto de Goethe, da mesma época). Algumas cenas, tais como a de Fausto bisbilhotando no quarto de Margarida e escondendo-se no momento em que ela entra para cantar “Le Roi de Thulé” [O Rei de Tule], pedem uma encenação. Outras, como a de Fausto e Mefistófeles transportando-se pelo ar para um outro lugar e, especialmente, a de sua cavalgada para o inferno, na quarta seção, são certamente melodramáticas, mas talvez sejam difíceis de serem levadas ao palco (Berlioz acreditava que os maquinistas das óperas em Londres resolveriam essa questão facilmente; já sobre os cantores, não diz nada).

 

Primeira página de um libreto de A Danação de Fausto, Monte Carlo, 1893.

No final das contas, A Danação de Fausto não virou ópera, e ninguém deveria tentar transformá-la em uma. Naquela época de sua vida, Berlioz não pensava no conceito wagneriano de Gesamtkunstwerke [obra de arte total], mas em obras dramático-musicais que cruzassem, nos dois sentidos, a fronteira entre o sinfônico e o operístico. Romeu e Julieta pertence a esse novo gênero tanto quanto A Danação de Fausto, sendo a única diferença entre elas o papel muito maior da voz solo nessa última. Apresentada na Opéra Comique (alugada pelo compositor), A Danação de Fausto foi um fracasso, em parte, certamente, por causa de sua forma aparentemente híbrida, totalmente distinta daquilo a que o público da casa estava acostumado. Berlioz pensou em transformar a obra em ópera não por tê-la concebido assim, mas porque apenas obras encenadas tinham qualquer chance de sucesso com o público parisiense da época3. Por uma ironia tipicamente berlioziana, A Danação de Fausto viria a se tornar uma de suas obras mais populares no final do século XIX.

 

Caricatura em aquarela de Hector Berlioz (autoria anônima, 1845); e Franz Liszt ao piano, rodeado por Hector Berlioz (em pé), Carl Czerny (pianista, compositor e professor de Liszt, ao lado de Berlioz), Heinrich Wilhelm Ernst (violinista, violista e compositor) e Josef Kriehuber (litógrafo), em litografia de 1845, do vienense Kriehuber.  

 

Berlioz criou A Danação de Fausto canibalizando suas Oito Cenas de Fausto, de 1828-29. A peça anterior foi usada integralmente, inclusive as famosas “Canção do Rato”, de Brander, “Canção da Pulga”, de Mefistófeles, e as duas principais árias de Margarida4. Ele manteve a maior parte daquilo que escrevera quinze anos antes, acrescentando material de introdução, conclusão e transição, e enriquecendo a textura do acompanhamento — um exemplo perfeito de um compositor maduro que repensa sua obra de juventude sem renegá-la. Novos episódios foram criados, e a ordem dos acontecimentos rearranjada de modo a compor uma sequência de cenas satisfatória, se não um enredo, como comumente entendido. Uma adição extraordinária é o “Amen” fugal, uma bênção pseudorreligiosa ao rato morto da canção de estudante de Brander. A fuga, baseada na abertura da canção, é estritamente correta. O humor irreverente da peça torna-se mais explícito ao longo das dúzias de vezes em que os améns silábicos são repetidos na coda, e, ainda assim, os ouvintes da época, especialmente na Alemanha, não tinham certeza se a obra seria intencionalmente séria ou cômica. O humor gaulês nem sempre viaja bem5.

 

Além de sua inventiva riqueza musical — como Mendelssohn [Felix Mendelssohn Bartholdy, [1809-47] em seu Sonho de uma Noite de Verão, Berlioz foi capaz de criar um material novo, que combinasse com a verve das cenas de Fausto de sua juventude —, uma das características mais marcantes de A Danação de Fausto é sua unidade musical. Em parte, isso é obtido através de desen- volvimentos e transformações melódicas. Um exemplo: o tema orquestral que percorre a cena de abertura da obra, tipicamente berlioziano, parece derivado da melodia que domina o “Concert de Sylphes” [Concerto de Silfos] (1828-29) ou o “Chœur de Gnomes et de Sylphes” [Coro de Gnomos e Silfos] (1845-46); variações aparecem em vários momentos proeminentes da música.

 

Berlioz também emprega motivos repetidos a fim de identificar os personagens (especialmente Mefistófeles) ou em referência a eventos e situações, geralmente citando um fragmento daquilo que, à frente, irá se tornar uma melodia plenamente desenvolvida6. O personagem dramática e musicalmente mais rico e satisfatório da obra é Mefistófeles. Isso não é nenhuma surpresa vindo do compositor da Sinfonia Fantástica. Nem Margarida, nem Fausto conseguem ser dramaticamente tão interessantes, sendo que esse último sequer canta tanta música boa. Tendo a pensar que Goethe é tão responsável por isso quanto Berlioz; a verdade, contudo, é que as páginas mais animadas dessa partitura raramente tediosa são aquelas em que Mefistófeles dá o ar da graça. Para as sensibilidades do século XX, a cena final, em que Margarida é recebida no céu, pode ser um anticlímax após o pandemônio infernal que a precede. Aqui, em especial, devemos tentar ouvir com ouvidos do século XIX e agradecer pelo fato de a música não ser tão melosa quanto talvez viesse a ser, se escrita por outras mãos. Berlioz dedicou A Danação de Fausto a Liszt [Franz Liszt, 1811-86]. A amizade íntima entre os dois esfriou gradualmente, mas nos anos 1850 Liszt ainda era um ativo advogado da música de Berlioz, interpretando em Weimar tanto Benvenuto Cellini quanto Fausto. Em 1857, a Sinfonia Fausto de Liszt, pertinentemente dedicada a Berlioz, foi estreada.

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1 A encenação de 1893 foi realizada por Raoul Gunsbourg, que citou uma nota (fictícia) de Berlioz, que dizia que a obra deveria ser uma ópera encenada. Ver TIERSOT, Julien. Hector Berlioz, Le Musicien Errant 1842-1853. Paris: Calman-Lévy, 1927, p. 164. A encenação de Sir Thomas Beecham recebeu uma resenha lamentavelmente negativa de MCNAUGHT, W. La Damnation de Faust as an Opera, The Musical Times, v. 74, pp. 645-46, 1933.


2 Para acesso às cartas de Berlioz a Scribe, de agosto a dezembro de 1847 ver BERLIOZ, Hector. Correspondance Générale (1842- 1850). Vol. 3. (Ed. Pierre Citron). Paris: Flammarion, 1978, pp. 445-85. A obra deveria se chamar “Méfistophélès”, em parte por conta de já existir um Fausto, de Spohr, mas também em reconhecimento, creio, ao verdadeiro personagem central do enredo. Gounod, certamente, reverteria o título para Fausto, em 1859.

 

3 Ver BERLIOZ, Hector. New Edition of the Complete Works. Vol. 8 (Ed. de Hugh Macdonald). Kassel: Bärenreiter, 1979-86, p. 458. O fracasso da apresentação de 1846 foi parcialmente dirimido por uma outra apresentação, muito bem-sucedida, dirigida pelo próprio Berlioz, em Viena, em 1866.

 

4 As cenas às quais o autor se refere de modo lato são, respectivamente, “Écot de Joyeux Compagnons. Histoire d’un Rat” [Conta de Companheiros Felizes. História de um Rato] e “Chanson de Méphistophélès. Histoire d’une Puce [Canção de Mefistófeles. História de uma Pulga], “Le Roi de Thulé. Chanson Gothique” [O Rei de Tule. Canção Gótica] e “Romance de Marguerite. Chœur de Soldats” [Romance de Margarida. Coro de Soldados]. Essas cenas foram incorporadas à obra A Danação de Fausto como “Chanson de Brander” [Canção de Brander], parte 2, cena 6, “Chanson de Méphistofélès” [Canção de Mefistófeles], parte 2, cena 6, “Le Roi de Thulé” [O Rei de Tule], parte 3, cena 11, e “Romance de Marguerite”, parte 4, cena 15. [N. T.]

 

5 Para o comentário pesaroso de Berlioz a esse respeito, ver BERLIOZ, Hector. “Est-ce une ironie?”. In Les Grotesques de la Musique. Paris: Librairie Nouvelle, 1859, pp. 30-32.

 

6 Ver HOLOMAN, D. Kern; MINNICK, Jonathan. Catalogue of the Works of Hector Berlioz.Kassel-Basel-London- -New York-Praha: Bärenreiter-Verlag Karl Vötterle GmbH & Co. KG, 1987, pp. 372-79.

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O artigo “A Danação de Fausto” [La Damnation de Faust] — © Cambridge University Press, reproduzido com a permissão
da editora através do PLSclear — integra a coletânea The Cambridge Companion to Berlioz, editada por Peter Bloom e publicada em 2000, com ensaios escritos por especialistas sobre o lugar de Berlioz na vida cultural francesa do século XIX. O musicólogo James Haar [1929-2018], autor de inúmeros estudos fundamentais sobre a música do período renascentista, foi William R. Kenan Jr., professor emérito de música da Universidade da Carolina do Norte, em Chapel Hill. Seu livro The Science and Art of Renaissance Music [l997] traz um capítulo sobre Berlioz e a “primeira ópera” e um capítulo sobre a música renascentista do ponto de vista dos românticos.

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Tradução Igor Reyner e Catherine Carignan

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GRAVAÇÕES RECOMENDADAS

 

Huit scènes de Faust

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Deutsche Grammophon, 1960

 

La Damnation de Faust

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Michael Myers tenor

Jean-Philippe Lafont barítono

Anne Sofie von Otter contralto

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