Temporada 2024
abril
s t q q s s d
<abril>
segterquaquisexsábdom
25262728293031
123 4 5 6 7
89101112 13 14
151617 18 19 20 21
222324 25 26 27 28
293012345
jan fev mar abr
mai jun jul ago
set out nov dez
PRAÇA JÚLIO PRESTES, Nº 16
01218 020 | SÃO PAULO - SP
+55 11 3367 9500
SEG A SEX – DAS 9h ÀS 18h
ENSAIOS
A Figura Musical de Aylton Escobar
Autor:Regina Porto
31/mar/2023
Aylton Escobar no hall da Sala São Paulo, 2012.

“Toda criação é, na sua origem, a luta de uma forma em potencial contra uma forma imitada”. A frase de André Malraux — trazida por Jean-Paul Sartre no prefácio de um livro essencial sobre música e ideologia do compositor e teórico René Leibowitz, L’Artiste et sa conscience (1949), livro que tanto contribuiu para a reflexão sobre a música do último século — também se presta aqui à perfeição para algumas considerações sobre a obra e as razões de um compositor que, no embate de uma vida com a forma, absorveu sem reservas as contradições estéticas, políticas e ideológicas de seu tempo e lugar: o brasileiro Aylton Escobar.

 

Aos 80 anos de idade e 60 de carreira, celebrado pela Osesp na Temporada 2023 como Compositor Visitante, Escobar, a cada vez que instado a discorrer em retrospecto sobre sua produção, principia pelo convívio de técnicas, tendências, estilos distintos, senão conflitantes, no conjunto da própria obra. É um assertivo indício primário para uma análise musicológica historicista, e que ajuda a compreender como sua obra se comporta no tempo e as relações que passa a estabelecer em condições extemporâneas. Em qualquer circunstância, todo o painel Escobar será sempre uma “confissão dos experimentos que confrontaram teorias no ringue da prática profissional”, como já declarou no passado numa frase reveladora.

 

Que a ideia de “arte” e a de “confissão” coabitem, em Escobar, o mesmo espaço de reflexão é algo que carrega já em seu bojo a ambivalência, característica que irá claramente perpassar a trajetória e os caminhos de um compositor para o qual, paradoxalmente, jamais faltou o domínio da escrita — ou das escritas, em bom plural. Nesse binômio humano (a confissão) e supra-humano (a arte), Freud e Agostinho, dois pilares do pensamento que, em boa medida, ainda moldam certo modelo prevalente na cultura ocidental, acabam por ser fatalmente convocados, tanto na feitura como na escuta de sua música. Quando não pela aproximação possível entre moral dogmática e emancipação psicanalítica, por certo, por propiciarem dois eixos de leitura, o que permite recodificar os signos de sua obra em amplo espectro, dando ao autor o status de sujeito histórico. Pois que Aylton não está isolado.

 

Coro da Osesp em apresentação de Vieira: Santo Antonio Prega aos Peixes (Uma Cerimônia), peça encomendada pela Orquestra a Aylton Escobar (no centro do palco), sob regência de María Guinand na Sala São Paulo em 2018.

A ideia de “forma em potencial” contra “forma imitada” de que fala o esteta Malraux — impasse que, há mais de um século, rege em particular a chamada música contemporânea — encontra sua correspondência clássica no postulado freudiano totêmico, segundo o qual uma dada forma-matriz é substituída por outra, sucessiva e indefinidamente, sempre em relação de contiguidade, seja por laços de “parentesco” ou por transmissão hereditária. Dá-se que, na psique como na cultura e na arte, romper é um imperativo humano. Mas não só. É preciso romper e garantir a permanência do grande totem (da origem, da espécie, do tronco: em uma palavra, da linhagem). Eis, porém, que, para cada artífice da música dos séculos XX e XXI, o que antes era premissa ontológica coletiva, língua comum, acaba por se tornar idioma individual, código fechado: a evolução como tarefa particular, isolada, intransferível. A progressão dialética da história dá, assim, lugar a responsabilidades pessoais, em que a cada um cumpre dar conta, sozinho, da contemporaneidade do mundo — e de si. Uma luta e tanto.

 

Músicos e criadores não ignoram os aspectos terríficos do confronto com eles mesmos e com a alteridade. Está dado o “ringue” de que fala Escobar. Desnecessário apontar as angústias daí decorrentes, em que os sentidos de individualidade e anonimato (a “angústia do saber” de que fala Freud) se invertem, ora na constituição do sujeito, ora na afirmação da coletividade. No cenário atual, tal dilema tomou um tempo desmedido de compositores em profundas crises criativas e de autoidentificação. Contudo, outro “paradoxo da autonomia” resultou em um número infinito de possibilidades formais, técnicas e compositivas, a um grau jamais alcançado em qualquer dos capítulos anteriores da história da música, nem mesmo quando somados — o que é igualmente espantoso e fascinante.

 

No quadro brasileiro de um compositor como Aylton Escobar, em seu livre trânsito entre o nacionalismo e a experimentação, essa problemática ganha um contorno a mais quando inserida no contexto de país historicamente “novo”, parâmetro espinhoso, hoje revisto e ampliado à luz da decolonialidade, nesse que é um impasse teórico adicional em pleno ponto crítico. Para a geração dele, de Escobar, e a seguinte, os esforços de crescimento e de afirmação cultural da própria identidade se deram no limiar entre as forças locais e a estabelecida “tradição de vanguarda” do Velho Mundo, a Europa intelectual — que, por séculos, estabeleceu-se, em préstimo próprio ou por empréstimo, como epicentro do legado do saber ocidental. Contingências históricas e forças transculturais, que migraram entre civilizações ao choque de uma colonização, produziram diferentes escalas de tempo de maturação, assimilação e autonomia — lapso esse que, mesmo mitigado por maior fluxo de informação, ainda persiste.

 

Em outras palavras, o criador brasileiro dito moderno, o modernista, o pós-moderno, mesmo o pós-pós-moderno (e Escobar é todos), sempre esteve dividido entre dois valores: a herança local de seu riacho e o vasto oceano do pertencimento universal, leia-se, hoje, eurocentrista, no viés conceitual em debate. Posto o paradigma de “universalidade” sob nova égide, fortalece-se já o entendimento de que nenhuma música é universalista; é sempre partidária.

 

Alheio a essa discussão em seu tempo, a alta educação formal de Aylton Escobar certamente deu a ele firmeza através das diferentes trilhas compositivas. Destacam-se seus anos de estudos sólidos com um titã nacionalista, o ferrenho e “magnético” Camargo Guarnieri, com quem num primeiro momento Aylton abraçou um programa estético, na acepção mais ideológica do termo (o Estado-Nação como entidade geopolítica e unidade cultural, a agência subjetiva a serviço de uma identidade nacional). O compositor assimilou um amplo leque de bases técnicas e metodológicas para suas boas práticas no ofício da escritura musical, não obstante as confessas “reviravoltas” e “incertezas” que posteriormente viriam a afligi-lo ao longo de seu percurso artístico e do desenvolvimento de sua personalidade. O fato de a biografia de Escobar prosseguir nos Estados Unidos, com especialização em um universo tão contrastante como o da música eletroacústica, poderia sinalizar uma ruptura com os cânones vigentes, não fosse o que foi: o rearranjo e a recomposição das novas ferramentas e fontes formais.

 

Estreia de A Rua dos Douradores: Litania da Esperança com a Orquestra e o Coro da Osesp sob regência de Osmo Vänskä na Sala São Paulo em 2015.

Em síntese, para além dos códigos dados e dos sentidos, sua música passa a ter como assinatura a combinação radical de signos contrários e opostos: uníssonos e consonâncias contra clusters; notações convencionais combinadas a grafismos; timbres temperados e ruídos desconexos; a dissonância e sua rendição; os sons próximos e os extremos; o rigor e a liberdade. Um misto de junção e disjunção, sincronia e diacronia, estrutura e desestrutura, em que não faltam referências, melhor dizendo, reverências a totens do chamado “museu imaginário” da música culta, de Bach a Webern. Esse será seu primeiro traço identificável, seu valor de face primordial. Em flashes de narrativa. Simbólico como um sonho. Menos imediato, porém, e possivelmente mais decisivo na construção de sua figura musical, parece ser o ponto comum que subjaz a toda sua escritura, embora nem sempre facilmente detectável, nem sempre explicitamente em primeiro plano: a voz humana. Como se, mesmo quando ausente, sem um traço sequer na partitura, houvesse sempre essa “presença da voz” a cada obra sua. Pode-se especular, hipoteticamente, sobre o artista e sua consciência, sua profundeza psíquica, sua vontade de transcendência e devir espiritual, sua ânsia metafísica; ou ainda, quem sabe, sobre a voz do sujeito histórico, que ousa tanger a dissonância social: alguém que profere seus princípios ao mundo (a preleção) e alguém cujo discurso clama por uma escuta (a psicanálise). Não por acaso seus títulos dão indícios evocativos de uma fala ou de um canto, não importa o quanto a composição seja enfática no texto, ou o quanto se abandone em si mesma, expressa no silêncio da música pura, sem palavras, como nas peças instrumentais.

Recorte da partitura de Rua dos Douradores: Litania da Esperança [2015], de Aylton Escobar. A peça sinfônica coral, escrita por encomenda da Osesp, será gravada, sob regência de Thierry Fischer, para álbum dedicado ao compositor a ser lançado pelo selo Naxos em 2023, como parte do projeto Brasil em Concerto.

De um modo ou de outro, sua obra percorre cirandas e cantochão medieval, antífonas e cantigas de roda, ladainhas e litanias, salmodias monocórdias e vozes semitonadas. Aparentemente uma disparidade de signos, mas todos perpassados pelo mistério da voz. Recorte da partitura de Rua dos Douradores: Litania da Esperança [2015], de Aylton Escobar. A peça sinfônica coral, escrita por encomenda da Osesp, será gravada, sob regência de Thierry Fischer, para álbum dedicado ao compositor a ser lançado pelo selo Naxos em 2023, como parte do projeto Brasil em Concerto. Não deixa de ser emblemático que a obra vocal de Aylton Escobar seja quase toda ela de orientação, digamos, laico-religiosa, se é que nele é possível (e é) mais esse paradoxo. A mesma voz matriz geradora de sua obra é plena de referências litúrgicas de orientação bíblica. Os Salmos [2008]. A Ave Maria [1963]. A Escada de Jade [2022, estreia mundial nesta Temporada 2023], paráfrase poética da escada de Jacó1. A Missa [1964] e seu Agnus Dei [1967]. Mas nunca, conforme ele mesmo afirma, o credo. “Não há música para o ‘Credo’: por alguma razão, sempre me neguei a musicar essa parte da liturgia católica”. Como se sabe, é no credo que se canta, se declara e se reafirma uma fórmula doutrinária e uma profissão de fé, desde os Concílios de Nicéia (séc. IV) e de Constantinopla (séc. IV). Uma reelaboração simbólica similar à das justaposições de valor entre ressonâncias “puras” e “impuras”, observadas no repertório de inspiração religiosa de Aylton Escobar, será uma constante também nas suas peças “profanas”. Nelas, repete-se o padrão de comportamento dual, num jogo entre o estável e o instável, o prazer e o desprazer, a transcendência da alma e a concretude do mundo, agora em cena. O maniqueísmo, inevitável, é de origem externa, mas é o compositor quem terá de se haver com a crise dada. Quanto maior a angústia da dissonância, maior a força atratora da consonância — seja esta ou aquela prevalente. Em Escobar, vêm juntos o sacro e o profano, a liturgia e a contravenção, a adoração do totem e a violação do tabu. Freud. Agostinho. Dezesseis séculos de herança agostiniana, ainda vigente em diferentes graus nas sociedades de maioria cristã, estão entre os pontos cegos com os quais ele tem de se haver, por vias conscientes ou inconscientes. A tradição. A contradição.

 

Musicalmente é, por exemplo, justapor esforços harmônicos hercúleos rendidos a um singelo intervalo de quinta justa, numa espécie de resolução musical e “moral” com raízes em séculos de codificação sonora. Como se, após um extravio, o compositor voltasse à regra, à correção, à ordem “superior”, curvando--se, num ato simbólico, a todo um sistema tonal erguido sobre a tradição pitagórica, em cuja fundamentação matemática da música, o intervalo de quinta justa representa “a essência de todas as coisas”: o número puro. Pois se Pitágoras assentou a fundação primordial da música na física acústica e Platão a sublimou, lançando-a às esferas do intangível — daí chamada de “música das esferas” ou “música mundana”, isto é, a música universal —, foi Agostinho, ele mesmo um filósofo neoplatônico, quem a consagrou no âmbito teológico monoteísta como expressão imaculada e excelsa da virtude do espírito.

 

Foi Agostinho quem legou ao Ocidente a associação entre música, moralidade e religião — não obstante ter deixado inconcluso seu obscuro, fascinante e místico tratado musical, “De Musica” (387-391).  Até ele, no século IV, a palavra “música” designava uma combinação de canto, palavra e dança — incluía o corpo físico, em sua imanência e esplendor. Foi também Agostinho quem teceu os fundamentos filosóficos da celebração litúrgica em forma de música — estratégia religiosa e política antes sistematizada por Santo Ambrósio para a difusão do texto bíblico nos primórdios da era medieval, quando ler e escrever era dado a uma parcela mínima da população. Com Agostinho, não só a missa cantada, como toda a música, passa a só se justificar na esfera sacra e como instrumento de elevação vertiginosa para a verdade divina: ascensão do espírito, ascendência sobre o corpo. O gozo espiritual em lugar do prazer sensorial.

 

Séculos se passaram, e a missa cantada subsiste até hoje; raramente na forma de celebração litúrgica, é verdade, mas com frequência até surpreendente no grande repertório de concerto. Com o tempo, e ainda que no inescapável tema da espiritualidade, a missa musical foi se tornando música cada vez mais corpórea, terrena; mais “encarnada”, para se usar um termo de alerta recorrente no tempo de Agostinho, ou mais humana, logo, vulnerável aos pecados do mundo. Tornou-se, assim, uma, manifestação religiosa cada vez mais longe dos modelos de Roma, mesmo que obedeça a convenção da igreja e mantenha o latim eclesiástico, como em regra se faz.

 

 

Muitas composições de Aylton Escobar celebram outros artistas, dialogam com eles ou se inspiram neles e em suas obras (da esquerda para a direita): Mário de Andrade (Orbis Factor), Federico García Lorca (Puñal), Miguel de Unamuno (Salmos Elegíacos), Hilda Hilst, Almeida Prado (Tombeau) e Fernando Pessoa (Rua dos Douradores).

 

No catálogo de Aylton Escobar destacam-se duas missas em latim, muito contrastantes, embora ambas do mesmo período (anos 1960) e sobre a mesma referência nacional, o poeta modernista Mário de Andrade. No primeiro caso, o compositor passeia pela escrita medieval (o gregoriano, a heterofonia, o “punctus contra punctum”, a polifonia) em uma cantiga para ninar o Cordeiro de Deus, o modal “Agnus Dei”, último movimento daquela que é sua primeira missa, por assim dizer, mestiça. Motetos e madrigais medievos se cruzam sincreticamente com a música cabocla e as brasilidades de época. Vem aos microcosmos do século XX, vai à noite dos tempos. Seria dubiamente gnóstica ou dubiamente pós-modernista?

 

Outra missa — Orbis Factor — retoma ciclicamente a jornada espiritual do compositor de forma transgressora, no extremo esfacelamento dos cânones da música sacra, com uma saraivada de eventos atonais simultâneos de grande densidade cromática e raros descansos tonais. A paz — “dona nobis pacem”—, “nunca mais”, canta a antífona. “A obra se livrou dos impuros serialismos e de certo modo respirou mais livre, tecnicamente mais divertida e expressivamente mais irônica.” Freud. Agostinho. A moral dogmática. A liberação psicanalítica.

 

Para os tempos modernos, Agostinho é, antes de tudo, o autor de Confissões, o que é, aqui também, conotativo. Escobar usa “confessar” suas errâncias e desvios musicais ao falar da própria obra, como já foi dito. Fica claro, em seu repertório, que compor é também um artifício de reeditar e ressignificar psicanaliticamente sua experiência músico-religiosa. E, em seu caso, sempre por meio de uma orientação de teor emocional e afetivo, naquele sentido humano proibitivo da Igreja primeva, no rigor de seus mandamentos na determinação da ascese. Foi no ápice desse jogo conflitante de corpo e espírito que Aylton celebrou com uma obra o colega de ofício José Antônio de Almeida Prado (1943-2010), esse para muitos a expressão viva e sem conflito do compositor agostiniano/antiagostiniano, no duplo senso da graça divina e da celebração do mundo físico pela via da música. A vida. A morte.

 

Mistério maior do corpo e do espírito, o tema da morte figura para Escobar em Puñal (2010) como música dramática, teatral: em clarificadores termos aristotélicos, música focada nas paixões e no coração humano, em que a linguagem musical se subordina à eloquência retórica, ao pathos e ao paroxismo do texto. Sobre uma “recitación” extraída de uma coletânea importante de Federico García Lorca (“Poema del Cante Jondo”, 1921), a peça recorre à tragédia de sangue característica do repertório flamenco e do folclore andaluz, à qual o compositor confere uma visão quase crística do anônimo martirizado. Toda a imagética é noturna, sombria, e a cor local é emulada pela ornamentação recorrente com appoggiaturas de segunda menor. “São cenas que se iluminam escassamente, e os silêncios abrem chagas na paisagem.” Como estigmas.

 

Ao se aproximar dos mistérios da cultura espanhola, Escobar como que busca outras bases metafísicas — tão gritantes em Lorca e que remetem sempre a um texto assombroso seu, “Teoria e Prática do Duende”, uma alegoria diversa do clichê do bibelô esotérico. Nele, o poeta reflete sobre essa figura mítica do daímôn louco, essa entidade que povoa o imaginário de um povo como um ideal de arte, de gênio, de vida e de morte, esse “espírito oculto da dolorida Espanha”. Esse duende mora em poucos. E só sua chama é capaz de promover, naqueles em que habita, reféns tornados de um “poder misterioso que todos sentem e nenhum filósofo explica”, a “evasão real e poética deste mundo”. Como não pensar, então, num certo estado de êxtase que aproxima o gozo estético, o físico e, sobre todas as coisas, o espiritual (como em Teresa D’Ávila2, citada por Lorca), num só segredo íntimo: “Ay, que vivo y muero...”

 

Mais recentemente, Aylton Escobar voltou-se para outro espanhol, o filósofo Miguel de Unamuno, morto no mesmo ano que Lorca, 1936, ambos sob condições políticas hostis, o governo franquista e a Guerra Civil Espanhola. Unamuno, a quem Escobar dedica seus Salmos [2008], é tido como o principal representante espanhol do chamado “existencialismo cristão”, corrente de pensamento que desagradou fortemente a Igreja, a ponto de ter sua obra mais conhecida condenada pelo Santo Ofício. Do Sentimento Trágico da Vida: Nos Homens e nos Povos, um ensaio crítico de teor místico e filosófico influenciado por Kierkegaard e Inácio de Loyola, juntamente com outro título seu, A Agonia do Cristianismo, foi inserido postumamente no Índice dos Livros Proibidos pela Santa Sé. No livro, o autor discorre sobre a condição humana, a imortalidade, o racionalismo e... Deus, ele mesmo. Questiona-o enquanto figura do Ser Supremo, do Deus antropomórfico, questiona-o tal como apreendido pela teologia escolástica e pela filosofia (a Ideia-Deus). E ainda que admita a total impossibilidade de a razão ou mesmo o poder provar sua inexistência, conclui em defesa de um Deus interior: “Porque o homem foi a Deus em busca do divino, em vez de deduzir o divino de Deus”.

 

Fica patente a identificação do compositor com o filósofo, suas considerações e sua crise. Afinal, qual Deus busca Aylton Escobar, ou de qual Deus se esquiva? Esse será um conflito histórico ou metafísico, ou simplesmente humano, demasiado humano? Na perspectiva freudiana vigente no mundo intelectual, o Deus descrito pela religião é uma sublimação paterna. Na resposta de Jacques Lacan, “Deus é inconsciente”, e “o estatuto do inconsciente é ético, e não ôntico”. Não há dúvida de que, ao recorrer com tal ênfase ao tema da religião, seja no seu viés íntimo ou no comunitário, a obra de Aylton Escobar visa a uma revelação epifânica, humana que seja, voltada para ideais complexos contidos em conceitos como ética, valor e verdade. No âmbito da arte, porém, tudo aquilo que se pretende como construção de sentido e desenvolvimento de um discurso será sempre historicamente contingente. Não se escapa ao contexto espaço-temporal. Sobretudo quando se almeja o alicerce infinito subjacente à agência da vida subjetiva, a pedra angular do si mesmo, mais todas as pedras do caminho. Sobreviverá o artista que lograr performar identidades e realidades coletivas (culturais, sociais, políticas) com independência afirmativa acima de qualquer ideologia. Por obra do desejo.

 

No exercício da psicanálise, demonstra-se que cada um é aquilo que carrega, voluntária ou involuntariamente. “O sujeito vive a repetição como algo real e atual, sem saber que o passado é uma força atuante”, escreveu Freud. Ou como bem testemunhou Henri Matisse: “Nossos sentidos têm uma idade de desenvolvimento que não advém do ambiente imediato, mas de um momento da civilização”. Ou como ponderou Jean-Paul Sartre a propósito da “presença silenciosa, em todo objeto sonoro, de uma época inteira e sua concepção do mundo”.

 

Estando no centro da questão um compositor que é tantos, como Aylton Escobar, talvez responda à questão dialética que põe o artista no epicentro da sociedade o mesmo René Leibowitz inicial, ao afirmar: “O músico engajado é aquele que, desafiando a ordem estabelecida no plano musical, desafia a mesma ordem no plano social e colabora assim para a instauração de uma sociedade de liberdade”. Esse será privilegiado pela fonte do desideratum.

_____

 

A escada de Jacó (Gênesis 28, 11-19) refere-se à escada que os anjos utilizam para transitarem entre o céu e a terra na visão do patriarca Jacó.

Teresa de Cepeda y Ahumada [1515-82], conhecida como Teresa de Jesus, nasceu em Ávila, na Espanha. Entrou para o convento carmelita da Encarnação aos 21 anos, foi canonizada pelo papa Gregório XV, em 1622, e proclamada Doutora da Igreja — ela e Santa Catarina de Sena [1347-80] foram as duas primeiras mulheres a obterem esse título — pelo papa Paulo VI em 1970. (N. E.)

_____

 

Regina Porto é compositora, ensaísta e documentalista. É mestranda em musicologia pela Unicamp e foi pesquisadora em arquivologia pela ECA-USP com extensão em patrimônio documental pelo IEB-USP. Dirigiu a rádio Cultura FM de SP, foi editora de música na revista Bravo!, curadora de concertos na CPFL Cultura e documentarista audiovisual na Osesp. Pesquisa o Acervo Koellreutter e a obra de Debussy. Criou o projeto Ludovica© OpenMusic. Texto originalmente publicado no encarte do álbum Aylton Escobar – Obras para Coro, Osesp, 2012, revisitado e ampliado pela autora especialmente para esta edição.

_____

 

GRAVAÇÕES RECOMENDADAS

 

Aylton Escobar: Obras para Coro

Coro da Osesp

Naomi Munakata regente

Selo Digital Osesp, 2012 [Álbum Digital]

 

Romaria: Choral Music from Brazil

Caius College

Geoffrey Webber regente

Delphian, 2015

 

Canções do Brasil

Coro da Osesp

Naomi Munakata regente

Biscoito Fino, 2009

 

Orquestra Filarmônica Norte e Nordeste e Aylton Escobar

Orquestra Filarmônica Norte e Nordeste

Aylton Escobar regente

CPC-UMES, 2000

 

Fios da Trama

Berro, 2021 [Álbum Digital]

 

Memória da Música Brasileira, Vol 1: Duos Sopros e Piano Contemporâneos

Alexandre Barros oboé

Miguel Rosselini piano

Três Marias Produções Artísticas, 2019